quinta-feira, 31 de março de 2022

# juízo

Oswaldo Guayasamín 


"Se sabias que eu não era Deus.

Se sabias que eu não era forte."

DRUMMOND



Seu juízo perfura-me o sono, acusa-me,

agudo sinal

Faz gemer minhas pequenas verdades

Quais?

Podia jurar que estavam aqui.


Giraram, sumiram, dançando na poeira.

Acusa-me! Voz metálica,

Eu mesmo

Por conta

Já digo: mendigo,

esmoler de sentimentos.


Esmoler não; extorsor.

Ou – ainda pior, no fim? – 

coração leviano

vagabundo,

que tem essa pressa de viver.


Mas 

são as suas palavras, não essas,

que me alcançam e incendeiam esta noite.



E elas só me dizem 

que está tarde

que nos perdemos

antes que eu pudesse perceber

que todo poema de amor 

é também sepultura. 



São Paulo, 25 de setembro de 2019.


terça-feira, 7 de dezembro de 2021

# quando



https://copacabana.com/fotos-classicas-1900-1950/praia-de-copacabana-anos-50


não tem futebol

nem sol

se eu soubesse cantar

se eu ainda soubesse


e se eu pudesse dizer

o cinza desse dia  

que entorna toda a noite em mim 


quando a má água

o mar de sal das mágoas

terá fim?



# são paulo, dezembro de 2021


segunda-feira, 15 de novembro de 2021

# sua voz

https://dmoure.tumblr.com/post/166909635597/29-oct-2017



sua voz 

escorre 

em minha escrita 


de uma palavra 

a outra

impõe-se

envenenando o passado


envenenando a memória 

e sua liberdade azul


impõe-se, sua voz 

sobre o silêncio e a dúvida


essa verdade: o pesadelo

se impõe 

sobre a inefável vontade do abraço

sobre a insolúvel gota de afeto


a verdade: a ordem

se impõe


sua voz: presença 

mantém a lisura das coisas como são neste momento: 

sensaboria


# São Paulo, novembro de 2021


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

# novembro

https://www.flickr.com/photos/98803345@N06/9406909635/in/photostream/



noite má

o travo

o azinhavre


flutuam no céu nuvens de chumbo


na terra

flutuam 

aflitas

todas as esperanças


# São Paulo, novembro de 2021

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

# esta escrota


https://www.behance.net/gallery/5322799/graphic-artworks




esta escrita escrava
avara
que não cede
ao que quer que saia 
de seu círculo

esta escrita escrota
que se gaba 
por ser rota

a escrita preclara
sábia, insidiosa, cínica
tímida
escrava da vaia e da barra de saia
da rima

esta escrita é pouca 
para as fomes vivas


# são paulo, outubro de 2021


terça-feira, 19 de outubro de 2021

# por acaso





Vomitar sobre a cidade

todo esse tempo

de ruínas

toda essa espera 

pensamentos torpes

despejar sobre a calçada

as fileiras de mortos

um tio meu

um conhecido

derrubar no asfalto

a saudade

esmagá-la entre os dedos

tentar descobrir 

com esse gesto

de onde foi que caímos



# são paulo, outubro de 2021


 

# nuvens


                         Quand la femme de Loth fait dérailler le train de l’histoire - Anselm Kiefer



Chove de novo e faz frio
Ainda mais do que ontem
O que me abriga além de obrigações?
A primavera postergada parece esperar pelo ano que vem

Nunca verei neve em minha cidade
mas também não vejo o mar
São quilômetros de cimento 
fios elétricos e automóveis
transportando fobias

Tudo é pressa
e tudo 
se demora
em esperar


# são paulo, outubro de 2021

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

# por que combater o fascismo?

https://i.pinimg.com/originals/79/86/55/798655dcc406ce4d3eac34c1a4e18477.jpg



porque é necessário

porque é urgente

porque é hoje

e o tempo urge.





quinta-feira, 22 de julho de 2021

# o significante

http://www.artnet.com/artists/francesco-clemente/2



o significante é tirânico

domina o céu

as naus

o escudo dos nautas

tribos, terras

gestas, gentes

riso, nos bares

no fogo por baixo das saias


o significante

soberbamente engaja

o medo pânico


o significante é um sino
suspenso entre o ser
e o abismo

oceânico
vulcânico
titânico
satânico

- o significante é imposição


# são paulo, julho de 2021


quarta-feira, 16 de junho de 2021

# desejo

 

i.pinimg.com


quero ficar 

dentro da caixa

na zona de conforto


não quero

empreeender

inovar 


quero beber

comer

usar o banheiro

e dormir



# São Paulo, junho de 2021


segunda-feira, 17 de maio de 2021

# processo


https://www.bioqualityrio.com.br



por que continuar
se ao final
certamente
não haverá
recompensa?

não haverá paz
nem pão
nem palavra

todos os dias buscando motivo
para prosseguir
buscando prosseguir para 
poder 
continuar
todos os dias o credo rançoso
a brisa antiga
infeliz
lembrança de potes vazios
seus sonhos 
a infância
escondida nos gritos contidos
do dia

nunca acenderão a luz
para podermos ver
o que seríamos
caso não fôssemos
exatamente isso
meta, busca, sequência
ou talvez espera
do que nunca teve nome
e todo mundo parece sentir
que conhece

ao final de uma, outra 
era 
afugentando o passado 
que retorna com insistência
engolindo estes dias 
que caminham cegos para o futuro:
oco sentido escuro
horizonte para além do palpável
sempre o amanhã no gosto
da espera, no rosto
da quimera

ao final de uma, outra surra
conta atrasada, acordar cedo
o fim de semana enfim o fim da linha
as férias enfim o fim
a aposentadoria o fim
a morte o fim do expediente
a liberdade para o caos sem palavras
depois e ainda e enquanto e sempre

todos os dias se emendando para um apagar o outro
todos os inícios se juntando para que não haja início
todas as variações se sucedendo em vertigem de modo que não haja
vertigem
a linguagem está morta
sepultem-nos, árvores
ignorem-nos, rios
esqueçam-nos, nuvens

o dia começa a entrar pela janela e novamente não dormi


# São Paulo, 17 de maio de 2021.


segunda-feira, 26 de abril de 2021

# vespertino

Tommy Ingberg




esta tarde calma

terrível

tentadora em sua inocência

abre uma frincha na parede do dia

e o olho perscruta

não o amanhã

mas os próximos séculos

quando não estaremos mais por aqui

nós 

essa espécie suicida


# São Paulo, 26 de abril de 2021


terça-feira, 6 de abril de 2021

# ironia

deuxtroistrucs


Ironia, 

pedra-lima

horror do suicida. 

Após o espetáculo 

é pó no espelho a alma do palhaço. 


Miríades, miríades, 

Fina rima à pele nova,

Esgrouvinhada no tempo, 

e mordida nas costas.  


Fina pele irônica, 

Tecelã de tecelãs

Decifra-me e calo-me

No embaraço do amor.  


Sob o ardor dos ponteiros, 

a campainha matutina do trabalho

acorda 

e se repete 

na voz de seminário 

– autômata  


Esperar, vesperar,  esperar 

A folhagem do sono

nos olhos do tempo.  

Você perdeu

no azinhavre da boca 

notas contra a natureza

- lutar contra janeiro e contra o sol. Lutar 

com ironia.  

Em tom mordaz morder o orgulho alheio


E agora, 

ardente, sardônica 

Ironia, 

Com que sagacidade nos cavou essa ruína?


a sós, 

sem luz, sem som:  

borrões de riso tresloucado.  



# São Paulo, 2007

terça-feira, 30 de março de 2021